Sombras da Meia-Noite - Capítulo Três

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A mansão continua de pé, apesar de muito antiga. É quase a mesma, a tinta que a reveste mudou, foi revitalizada. Ao muro, uma placa com a inscrição “Propriedade do Estado – Patrimônio Público” fora colocada. Milena sorri, ao contemplá-la.

— Vejo que cuidaram bem de minha casa.

Milena e Ricardo voam por cima do portão e entram na casa. Na sala, os móveis muito bem cuidados. Algumas partes reservadas para visitação pública. A porta embaixo da escada, selada. Os carpetes foram mudados, as obras de arte guardadas na casa foram revitalizadas, as demais foram levadas, provavelmente para um museu. 


As lembranças de Lady Anthonya estavam vívidas naquele lugar. Milena praticamente podia vê-la caminhar, elegante, pela sala, pelos corredores, subir as escadas num vôo, cheia de classe. Às vezes com ar de ranzinza, mas Milena sabia que ela era doce. Apenas havia sofrido demais após seu abraço, com o abandono de sua senhora, a Baronesa de Chatêau DuMont, a morte de seu esposo, o lord LeBeau, a separação de sua família e posterior morte de seu filho Laurence, a traição de sua primeira aprendiz. Entendia todas as razões de sua amargura. Podia compreendê-la perfeitamente. E podia ver em seus olhos cor de âmbar um grande amor, guardado em seu peito, que queria demonstrar, mas não conseguia. Podia ver tudo isso ali, olhando para a antiga sala, seu antigo lar. Mas todas aquelas lembranças a machucavam muito. Lady Anthonya não estava mais com ela. Nunca mais a veria, por culpa de Lázarus. Mas ele teria de pagar, ah, se teria!

Ricardo escorrega e se deixa cair em cima do sofá.

— Estou muito fraco!

— Você precisa de sangue.

— Por favor, não quero matar ninguém!

— Não vamos fazer isso. Espere aqui, eu volto num instante.

Milena se retira. Ricardo se levanta e olha em volta. Então era ali que Milena morava com sua senhora, a temida Lady Anthonya, sua ancestral. Caminha em direção à biblioteca e abre a porta. Dentro, uma escrivaninha antiga, mas bem cuidada. Uma poltrona, e muitas estantes. Todas vazias. Ricardo volta para a sala e sobe as escadas.

O antigo quarto de Milena está totalmente às escuras. Os olhos dourados de Ricardo, brilhantes no escuro, enxergam cada detalhe do aposento, como olhos de lince. Nas paredes, alguns castiçais sem velas, as cortinas das janelas abaixadas. A cama, coberta por mantas pretas.

Ricardo desce as escadas no momento em que Milena entra.

— Milena, fui à biblioteca, mas não encontrei livros lá.

— Eu sei. Quando pressenti minha morte, deixei instruções para meu servo. Pedi que ele os guardasse no porão e selasse a porta com um feitiço sem sangue.

— E onde ele está?

— Não sei... mas... o cheiro dele aqui não é muito antigo... ele esteve aqui, ainda ontem...

Ricardo nota que Milena está segurando algumas bolsas de sangue.

— Onde esteve?

— Fui a um banco de sangue.

— Você mesmo me disse que não podemos beber sangue morto!

— Não se preocupe. Acabei de fazer uma simples retirada de sangue. Fui ao Hemope, deixei a recepcionista desacordada e peguei um pouco de sangue dela. Bem, como vê, não somente dela. As vítimas vão viver. Quando acordarem, não vão se lembrar de nada. Tome.

Ricardo se transforma, seus olhos dourados ficam mais brilhantes, seus caninos crescem e ele ruge. Pega uma das bolsas e a rasga com os dentes.

— Beba o máximo que puder. Precisamos ficar bastante fortes para lutar. Precisamos também nos abster disso.

Ricardo joga a bolsa vazia de lado e pega outra. Milena olha ao seu redor.

— De volta pra casa.

Ricardo joga a outra bolsa vazia e, quando vai pegar a terceira, olha para Milena.

— Milena.

— Sim?

— Por que foi tão fácil voltar? Por que foi tão fácil nos reconstituir, voltar a viver? Não tínhamos morrido para sempre?

— Eu não sei, Ricardo. Eu não sei. Mas vou descobrir.

Ao se olharem, os olhos de Milena e Ricardo brilham.


***

Durante a noite, o Museu do Estado é fechado. Mas isso não impede que algumas pessoas, digamos assim, entrem. Rudolph é uma delas. Educado, elegantemente vestido, passos firmes mas silenciosos, mãos bem tratadas, cabelos grisalhos e bem penteados, olhos de um azul profundo que investigam o ambiente. A sala, a pinacoteca do museu. Totalmente às escuras, isso não é problema para um vampiro auspício.

Rudolph caminha vagarosamente entre as paredes repletas de pinturas de muitos artistas, locais e internacionais, réplicas e originais de tirar o fôlego. É o seu momento de prazer pessoal. A arte é como um bálsamo para seu interior. Um momento como nenhum outro. Às vezes, Rudolph vai ao teatro, ou ao cinema, ou a alguma ópera, mas seu lugar preferido é o museu. Relembra coisas que presenciou, acontecimentos e fatos que testemunhou. E era lá onde estava, e foi lá onde foi encontrado.

— Sabia que o encontraria aqui.

Rudolph não se perturba ante a voz do recém-chegado. Continua observando uma tela, bastante colorida.

— Este é um dos meus locais favoritos para passar o tempo. E, se existe alguma coisa que não me falta, é tempo.

— Não sei como você agüenta essa palhaçada de pintura. Cada coisa feia! Não dá pra entender nada!

Rudolph vira-se e quase fulmina o Ancilla com o olhar.

— Meu caro Lázarus, você jamais poderia entender o valor de uma tela de Tarsila Amaral, por exemplo.

Lázarus olha para a tela que Rudolph aponta.

— Eu quero lá entender um homem do pezão e uma cabeça minúscula!

— Vejo que você se enquadra perfeitamente no perfil Abaporu.

— Quê?

— Você é um perfeito idiota. Por que veio interromper-me em meu horário de lazer?

— Eu ressuscitei Milena.

Rudolph ri.

— Impossível. Não se pode ressuscitar um vampiro. Se ele já teve sua morte final, impossível.

— Não quando não se destrói o corpo.

— Como o encontrou?

— Isso é coisa minha. O que importa é que eu fiz e preciso de sua ajuda. Sua e de todos do clã Toreador.

Rudolph caminha em direção a Lázarus.

— E me diga, meu caro Malkaviano, por que eu me aliaria a você, convencendo os Toreador a fazerem o mesmo?

— Por que você me tem como a um filho. Lembre-se do laço de sangue que fizemos há quarenta anos.

— Claro. Como poderia me esquecer? Você me é uma vergonha. Nunca se interessou por arte ou por qualquer coisa. Sempre pensando em levar vantagem em tudo. Agora que domina os Malkavian de Recife acha que é alguma coisa. Mas eu lhe digo que não é.

Rudolph aproxima-se mais de Lázarus.

— Vocês, Bon Vivants, não são nada. São apenas sanguessugas que vivem para caçar e dormir.

— Rudolph? Por que está dizendo isso? Se é para tentar me convencer a fazer parte dessa sua ladainha de artistas plásticos e intelectuais, nem pense nisso. Na verdade, eu detesto os Toreador. Eles são chatos demais, vivem em museus! Que saco! Eu só quero a ajuda de vocês, porque vocês são muito fortes. Como você diz, os Bon Vivants não são nada. E Milena é uma Tremére. Mais do que isso: ela ressuscitou Ricardo, o namoradinho Tremére da oitava geração. Estamos ferrados se os dois vierem contra nós, o que é certo.

Rudolph caminha.

— Não sei se quero fazer parte disso. O que você vai ganhar?

— Quero dominá-la. Me casar com ela. Laços de sangue e tudo mais. Ela é quase uma mestra do clã Tremére, foi treinada para substituir Lady Anthonya na Primigênie, sétima geração, forte demais. Seus pontos de sangue são altos e tem poderes suficientes para acabar com duas castas inteiras. Uma delas seria a dos Malkavian. Eu sou apenas um vampiro da décima segunda geração. Não tenho tantos pontos de sangue e sou fraco diante dela. Dentre os fracos, sou o mais forte. Mas não sou nada perto dos grandes clãs. Preciso de Milena comigo.

— Você quer unir seu clã ao dela. Assim, você dominaria muitos clãs.

— Exatamente.

— E como pretende fazer isso? Milena não vai se unir a você, muito menos laço de sangue. Ainda mais agora que ela ressuscitou Ricardo.

— Por isso preciso dos Toreador. Vocês são fortes e muito inteligentes, são poderosos com pontos de sangue altos. Preciso de vocês.

Rudolph limita-se a ouvir, caminhar e observar uma pintura de Eckout.

— Eckout é maravilhoso em seus quadros.... bem... o que eu ganharia com isso?

— Você é o mestre dos Toreador por aqui. Teria a oportunidade de dominar os clãs de nossa região, Toreador e Tremére.

— Não acredito nisso. Você vai querer nos dominar. A nós, Toreador, aos Tremére, sem contar os Malkavian com você.

— Claro. Mas podemos dividir os clãs entre nós.

Rudolph sorri.

— Você tem um senso de humor incrível. Nada feito.

— Não pode me negar isso!

— Já neguei. Eu e os Toreador. Procure outro clã. Quem sabe os Nosferatu? E não pense você que a coisa toda está resolvida dentro dessa sua cabecinha lunática. Tenho ouvido rumores. Sete neófitos foram destruídos ontem, na região da periferia. E já soube que mais três foram destruídos no início da noite de hoje.

— Você acha que...

— Isso é atividade de um ancião recém-despertado. Há um novo ancião entre nós. Talvez você encontre nele um aliado, ou seja seu lanche...

Lázarus, humilhado, retira-se, ouvindo ainda ao longe a gargalhada de Rudolph na pinacoteca vazia. Mas, para Rudolph, as coisas não estão tranquilas. Se havia um novo ancião, recém despertado, isso era ruim. Ele sabia exatamente o que um ancião recém desperto era capaz de fazer. Ele mesmo fora um desses. Agora que o domínio de seu clã estava sob suas mãos, e já fazia algum tempo que viera de seu sono, ele podia se controlar. Um ancião novo poderia ser um grande problema. Alianças, isso era o que ele deveria fazer.

— Bem... para mim... eu tenho uma idéia bem melhor... Milena foi ressuscitada... isso é muito interessante....

Rudolph levanta vôo e entra num alçapão no teto, o seu esconderijo, que poucos conhecem.



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