Degustação - A Princesa de Cuxe (Capítulo 2)

Olá, querido leitor.
Se você caiu aqui de paraquedas, aproveite a leitura, e espero que goste.
Se você veio aqui por um anúncio meu, então aproveite para degustar.

Trata-se do segundo capítulo de meu mais novo livro (julho/2016), "A Princesa de Cuxe". Conta a história de Iana Urbi, filha dos reis da Núbia, que viaja para a capital do Egito no ano 23 do Faraó Ramsés II como uma tradição familiar. Lá, muitas coisas irão acontecer, como conspirações, traições, e um belo hebreu que vem para libertar seu povo do Egito e acaba também arrebatando o coração da princesa.

Se você chegou agora, clique para ler o PRÓLOGO e o CAPÍTULO 1. Ao final de cada postagem há um link para direcioná-lo à próxima.


Boa leitura!

***

A Princesa de Cuxe
Capítulo 2




A cidade de Kerma estava em alvoroço. Assim como todo o Egito e toda a Núbia. Era o dia do cortejo em comemoração à chegada de Chemu. O povo núbio estava às ruas, bem como egípcios e mercadores de outras localidades, aguardando a passagem da família real de Cuxe. As honrarias não eram as mesmas dadas à família real egípcia, em Avaris, mas o povo cuxita honrava seus reis de modo semelhante.

O cortejo se seguiu, com escravos carregando as liteiras e carros puxados por bois levando andores com as oferendas públicas, as honrarias às deusas Anuket, protetora da Alta Núbia, e Isis, deusa da fertilidade, e a Osíris, deus do renascimento. As sacerdotisas do templo de Anuket em Kerma vieram, e o sacerdote de Osíris, também do templo de Kerma, estava presente. Um carro levava o rei Zaki e a rainha Zerina, e logo atrás vinham um carro com o príncipe Aksumai, herdeiro do trono cuxita, um carro com a princesa Iana Urbi, e o último carro com o príncipe Taú. O exército núbio se postara para proteção da família real, das sacerdotisas e do principal sacerdote, de cada lado das ruas por onde passaria o cortejo, e também guardas ao lado de cada um dos carros. À frente, um andor especial com a estátua de Osíris, seguida pela estátua de Ísis, e um andor menor para a estátua de Anuket. À frente seguiam as sacerdotisas, puxando o cortejo com danças e músicas.

Iana observava a tudo aquilo, recebendo as venerações do povo, que se curvava ante a passagem da família real cuxita. Mas sua mente estava longe. Tinha um pressentimento. Não sabia explicar exatamente, mas parecia que aqueles dias teriam um fim brevemente.

Ao lado de seu carro, estava o general Menik, que fazia a guarda da princesa pessoalmente. Ela o observou. Ele parecia eufórico. Sim, ela sabia. Aquele tipo de cortejo causava euforia nas pessoas. Mas tudo o que ela queria, naquele momento, era estar longe dali. A expectativa a estava matando.


***


Será que teria coragem de falar com ela? Menik não tinha ideia. Não tinha problema algum em enfrentar uma guerra, com carros e cavalos, e empunhar sua espada contra os inimigos do reino, seja de Cuxe, seja do Egito. Não via problema algum em enfrentar uma fera do deserto. Mas não conseguia criar coragem e falar com a princesa.

Durante anos nutrira amor pela Bela Flor dos Reis. Vira-a crescer e, quando atingiu sua maturidade e ganhou o jardim da princesa, pensou em falar diretamente com o seu pai. Mas não teve coragem.

Como poderia? Jamais receberia permissão para casar-se com ela. Pensava em criar coragem, ensaiava as palavras certas, mas nunca falava. O tempo foi passando, e agora ele estava ali, ao lado do carro que a transportava. E ela estava tão bela! Seu ar imponente de rainha, e seu olhar para todos os súditos, como se estivesse compenetrada pelas honrarias do povo, a deixavam ainda mais bonita.

E ainda mais distante.

Menik sabia que seu tempo estava se esgotando. Esperara cinco anos para falar com ela, e agora sabia que não tinha mais tempo. Ela partiria em uma semana para Avaris, onde ficaria por dois anos aprendendo na Casa Jeneret, sob os cuidados das esposas do Senhor das Duas Coroas e da Grande Esposa Real. Aprenderia diretamente de Sehpset, o venerável das mulheres, o eunuco que tratava de ensinar as princesas e suas filhas, bem como as filhas de nobres que buscavam esta educação.

Mas sua euforia e nervosismo vinham de outro lugar. Esta manhã, na reunião sobre o cortejo, o Rei Zaki decidiu que Menik e alguns soldados fariam a viagem com a princesa, para sua proteção no trajeto, e levariam uma carga de presentes ao Soberano Ramsés II e à Grande Esposa Real Nefertari. Sabia que teria de voltar imediatamente, mas sentia que seu tempo ao lado da princesa estava sendo prorrogado e novas esperanças nasceram em seu coração.

E se conseguisse falar com a princesa durante a viagem? E se ela o aceitasse? Se seus sentimentos por ela fossem recíprocos? Se ela também o amasse, não precisaria se preocupar tanto por causa da hierarquia. Talvez o Rei e a Rainha permitissem o casamento se fosse por amor à Iana. De qualquer maneira, Iana não era herdeira do trono cuxita. Seu irmão Aksumai era o Príncipe que ocuparia o lugar de seu pai após sua morte.

Suas esperanças se renovaram quando olhou para a princesa e ela estava observando-o com um olhar enigmático. Será que, finalmente, Iana Urbi o havia notado?

Voltou-se para o trajeto com o coração alegre, saltando no peito.


***


O cortejo se encerrou, e Iana voltou para seus aposentos a fim de descansar e preparar-se para o banquete que teria início àquela noite, e se estenderia por mais sete dias. Este banquete era realizado todos os anos, em honras aos deuses, ao início da colheita e, principalmente, em honras a ela própria.

Estava acostumada a este tipo de evento. Mas estava cansada. Talvez a noite mal dormida e a ansiedade tenham dado conta de seu corpo e espírito muito antes do tempo, e ela precisasse dormir. De qualquer maneira, não poderia ausentar-se. Seria uma afronta, uma desonra e um desrespeito muito grande aos seus pais, os reis, e aos deuses.

Príncipes e nobres estavam presentes no salão de banquetes, bem como alguns nobres egípcios de cidades próximas, no Alto Egito. Sua mãe a havia alertado. Alguns tentariam aproximar-se dela com vistas a um casamento. Talvez antes que viajasse para Avaris o arranjo teria sido feito, e ela, quando retornasse, teria um casamento esperando por ela.

Ela sabia que isso aconteceria desde que completara dez anos. Seu pai a havia preparado para aquele momento, e sua mãe lhe havia ensinado tudo o que ela precisava saber.

Uma angústia assomou-se a seu peito. Não queria um casamento naquele momento. Talvez a viagem à cidade do Faraó fosse realmente providencial. Dois anos longe a deixariam um pouco alheia a isto. Lhe daria mais tempo para se preparar para este fatídico fim.

Não que Iana não quisesse se casar. Sim, ela queria. Mas não dessa forma. Quando criança, sua mãe lera para ela inúmeros poemas egípcios que mostravam o amor entre Osíris e Ísis, entre faraós e suas esposas, deuses e deusas. O próprio Faraó Ramsés II estava construindo, ali perto, em Assuan, um templo em homenagem à sua esposa Nefertari, consagrando-a eternamente como a deusa do amor, Hathor, e deixava claro para quem quisesse que ela era sua amada esposa.

Iana não queria um casamento sem amor, embora nem mesmo soubesse o que isto significava. Nunca havia experimentado o amor, e não queria se casar sem experimentá-lo. Talvez fosse essa a apreensão que sentia desde que o Dia da Colheita se aproximava e, com ele, o dia de sua viagem. E agora que ele havia chegado e faltava pouco para partir, sentia que seu peito ia congelar, como se o deserto se dissolvesse em frio e o Nilo parasse de correr.

Era medo. Ela sabia. Mas não podia deixar-se vencer pelo medo, como sua mãe dissera. Levantou-se de seu toucador e preparou-se para o banquete.



***



Assim que a Princesa Iana Urbi foi anunciada, o coração de Menik saltou. Olhou para as imensas portas e viu-as serem abertas, as duas folhas, uma de cada lado, e, precedida por bailarinas núbias, Iana adentrou o salão. Nobres cuxitas e egípcios ficaram de pé ante sua entrada. Sua beleza irradiou todo o ambiente, e todos os olhares de homens e mulheres foram atraídos para si.

Menik, obviamente, ficou hipnotizado pela sua imagem, e ao mesmo tempo enciumado por haver ali vários homens que, com certeza, seriam muito melhor aceitos pelo Rei Zaki como genro do que ele. Sabia que não tinha a menor chance com a Princesa.

Esperava apenas que não fosse arranjado nenhum casamento para ela antes que eles viajassem, para que ele tivesse uma oportunidade de falar-lhe durante a descida ao Baixo Egito. Passariam alguns dias em transporte, e ele, talvez, tivesse uma oportunidade.

Quem sabe?



***



Iana estava deitada em seus aposentos, observando as peles penduradas nas paredes ricamente enfeitadas. Amanhecera, mas ela não tinha coragem de levantar-se. Fora uma semana extremamente extenuante, com festas, banquetes, danças, música, e muitos nobres querendo conhecê-la. Estava cansada.

Mas não era por isso que estava tão apreensiva.

Naquele dia, ela cortaria seu cabelo. O deixaria completamente curto, à moda das mulheres egípcias. Vestiria, pela primeira vez, uma peruca, e seguiria rumo a Avaris.

Em todos esses anos, só cortava o cabelo o necessário para moldá-lo, de modo que seu rosto se tornasse “o rosto de uma rainha”, como dizia sua mãe. Amava seus cabelos. Gostava de prender enfeites neles, de colocar pendentes de ouro e pérolas egípcias, de colocar coroas de rubis vindos do sul da Núbia. Agora, perderia seus cabelos e todos os enfeites estariam em suas perucas.

Recebera-as de seu pai na noite anterior. Uma dúzia delas. Seu pai havia encomendado as perucas egípcias há meses, e sua serva Kenia, de forma habilidosa, as havia enfeitado com safiras, lápis-lazúli, rubis e fios de ouro. Garantiu-lhe que ficaria deslumbrante.

Sentou-se. Olhou-se no espelho que ficava ao lado de seu leito. Ela sabia que seu próprio cabelo era deslumbrante, mas mostrá-lo à Rainha e ao Faraó seria um grande desrespeito.

Não podia mais protelar. Devia seguir com o que havia sido ordenado.

Bom, ao menos conseguira, durante uma semana, se esquivar de todos os nobres que tentaram conquistá-la. E isso se devia não só ao seu poder de persuasão ou de fuga. Conseguira de seu pai uma promessa. Que só a casaria quando retornasse de Avaris, dali a dois anos.

Suspirou. Chamou sua serva. Precisava começar o quanto antes.



***



Os preparativos para a viagem haviam sido concluídos. Um barco estava pronto para levá-los para o outro lado do Nilo, onde uma caravana os levaria com todos os presentes aos Soberanos até a grande Buhen, na fronteira norte entre o Reino de Cuxe e o Egito, onde passariam a noite. Pela manhã, tomariam um barco e desceriam o Nilo até próximo de Assuan, onde deveriam desembarcar e fazer o trajeto em caravana até Nekhen, por causa da primeira catarata do Nilo em Assuan. De lá, seguiriam em uma felucca e desceriam o Nilo até Avaris, no Delta Oriental, onde estavam sendo aguardados por alguns servos do Faraó, que os levariam diretamente ao palácio.

Enquanto Iana despedia-se de seus pais e seus irmãos, sentiu que viajaria por muito mais tempo do que apenas o previsto, e abraçou Zerina por mais tempo do que o costume.

— Ora, ora, minha filha — disse a rainha sorrindo. — Não irás demorar. Dois anos se passarão rápido, você verá. E quando voltar, você estará pronta para assumir sua própria casa, sua própria vida, e seu lugar ao lado de sua família neste reino.

Seu pai se aproximou e abraçou a filha.

— Você está linda — disse ele, olhando-a em seus olhos.

Iana quis chorar. Seus cabelos haviam sido cortados, e agora, em sua cabeça, havia apenas uma peruca lisa, com o peso dos enfeites, mas sem nenhum volume.

— Não se preocupe, minha filha — disse Zarina. — Em breve, você terá seus belos cabelos novamente.

Iana assentiu sem dizer uma palavra.

— Tome — disse sua mãe, pegando das mãos de uma serva uma gata e entregando-a a Iana. — Esta é Kefera, e ela vai protegê-la durante todo o tempo em que estiver fora.

— Obrigada, minha mãe! — A princesa aconchegou a gata em seus braços.

— Vamos? Está na hora.

Ela voltou-se. Era o general Menik que a aguardava para ajudá-la a subir no barco que os levaria à outra margem do Nilo. Olhou novamente para sua família e, em seguida, aceitou a mão do general, subindo a bordo por uma rampa de madeira.

Quando o barco passou a fazer a travessia, ela viu seu irmão Aksumai acenar para ela e sentiu um aperto no peito.



***




A viagem não foi penosa. Durou apenas alguns poucos dias. Pelo caminho hospedaram-se em alguns lugares preparados para tal, para que não ficassem desprotegidos durante a noite, sem a luz de Rá, conforme o programado. A deusa Bastet a protegia, pois carregava consigo Kefera, e sentia a proteção da deusa através do olhar da gata.

De certa forma, seus medos foram aplacados durante a viagem. Sua ansiedade finalmente chegou ao fim, pois enfim, o projeto de sua vida pelo qual esperara por tanto tempo, havia dado início.

Ela só não sabia o que lhe esperava em Avaris.



***



As esperanças de Menik foram por terra. Já estavam chegando a Buhen e não conseguira uma oportunidade sequer para falar com Iana. Ela estava sempre com o olhar perdido, sem querer que ninguém se aproximasse. Quando tentou conversar com ela, ela respondeu com palavras curtas ou simplesmente com resmungos. Estava claro que não queria conversar, e resolveu deixá-la em paz.

Quando pararam para passar a noite em Buhen, dar água aos animais e se acomodar antes de seguir viagem até a primeira catarata em Assuan, ele viu sua oportunidade.

— Princesa?

Ela estava de pé, observando ao longe o santuário de Hórus embelezado pela rainha Hatshepsut, enquanto os servos descarregavam e levavam as bagagens para o interior de uma estalagem.

— Sim? — disse ela, virando-se.

Menik parou por um instante, admirando o olhar da princesa, que lhe transmitia, ao mesmo tempo, medo, insegurança, coragem e determinação.

— Você ia dizer alguma coisa, general?

— Bem — começou ele —, eu ia perguntar como se sente. Foi uma longa viagem até aqui, e receio que este tipo de viagem não seja adequado a uma princesa, com todo o conforto que mereça.

— Não se preocupe, Menik. Não sou tão frágil. Minha mãe fez esta viagem antes de mim, e sua mãe antes dela também. Faz parte da tradição. — Dizendo isso, Iana virou-se para a vista à sua frente.

Menik sabia que aquele era o momento de se retirar, mas temeu que não tivesse outra oportunidade. Assim que chegassem a Avaris, ela seria levada à presença do Faraó e, depois, encaminhada ao Harém das mulheres e à Casa Jeneret. Então, ele teria de voltar para Kerma e não poderia mais vê-la, até que se lhe completassem os dias de aprendizado e voltasse para a casa dos pais. Mas, se assim fosse, ele não teria mais sua oportunidade de casar-se com a princesa; ela teria pretendentes nobres, que em seu último banquete manifestaram o desejo de servir-lhe como esposo.

— O que quero dizer, senhora, é como se sente em seu coração. Sei que deves estar cansada. Mas percebo que a senhora está, de certo modo, apreensiva.

Iana suspirou.

— Sim, general. Estou. É uma mudança de vida e, apesar de estar esperando por isso há tanto tempo, ainda assim é difícil encará-la. Não sei o que virá pela frente e, especialmente, parece que esta viagem será diferente da de minha mãe e minha avó.

— Por que sente isso? — perguntou Menik, questionando-se se não estava indo longe demais.

— Não sei te dizer. No dia do meu aniversário vi um íbis branco pousar em minha piscina. Um bom presságio. Mas, desde então, a apreensão em meu peito só faz crescer. Acredito que algo muito grande está vindo em minha direção, e ainda não sei identificar se será algo bom ou mal.

Os dois ficaram em silêncio, Menik sem saber se devia continuar, se devia ir direto ao ponto. Quando estava nesta indecisão, uma serva se aproximou, avisando que os aposentos da princesa estavam prontos, e ela despediu-se e entrou, deixando um Menik novamente frustrado.



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