Olhos da Meia-Noite - Capítulo Quatro

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Milena e Lady Anthonya chegam ao antigo casarão. Com seu olfato apurado, Milena distinguia odores os mais diversos. Haviam muitos vampiros ali. Podia sentir nitidamente o cheiro de cada um deles, Brujah, Gangrel, Malkavian, Nosferatu, Toreador, Ventrue e Tremere. Podia ouvir suas conversas, antes mesmo de entrar. Perto delas, passou correndo uma criatura, que Milena pôde identificar como pertencente ao clã Nosferatu.

Após a entrada de todos, a porta principal teria de ser selada.


— Venha, Milena, hoje todos a conhecerão.

Milena acompanha Lady Anthonya, para selar a porta com um feitiço. As duas Tremere furam a palma da mão esquerda com a unha do polegar direito, derramando o sangue na porta, dizendo juntas as palavras em Holf Toschia:

“— Pret Dart, Paranã-Pukana. Pret Dart, Paranã-Pukana.”

A porta é fechada e se torna impossível de ser aberta, a não ser pelas duas Tremere. Todos observam Milena, a Criança da Noite de lady Anthonya, que a acompanha até o centro da sala. Os vampiros a olham com um misto de admiração e desinteresse. Milena vê entre eles Lázarus, com seu senhor, o ancião dos Malkavian, pressupôs Milena. Ela percebe que ele se agita, pelo cheiro que deixa no ar. Milena não se incomoda, nem deixa transparecer, visto que Lázarus também é um vampiro auspício. E isso o deixa ainda mais nervoso. Em seus lábios, Milena esboça um pequeno sorriso de satisfação. Estaria ela sendo atraída para a Jyhad? Estaria isto em seu sangue vampiresco?

O Príncipe da Região se levanta, com sua capa preta reluzente, e caminha soberbo até à frente de todos, fazendo sinal para que se sentem. Sua voz era clara e forte:

— Primigênie de Recife e Região Metropolitana. Bem-vindos à esta reunião. Antes de mais nada, gostaria de apresentar-vos a mais nova Criança da Noite, sob os cuidados da anciã Lady Anthonya, representante do clã Tremere.

Milena sente os olhares de todos os presentes quase a tocarem. Lady Anthonya fica de pé, convidando-a a fazer o mesmo.

— Seu nome é Milena. Está sob treinamento em minha mansão.

De pé, Milena olha para cada um dos anciãos e não vê em seus olhos nem aprovação e nem reprovação. Absolutamente nenhum sentimento. Desta feita, não esboça nenhuma reação, nenhum sorriso, nada. Apenas olha para eles, sente-se superior, e senta-se em seguida. Como disse sua tutora, tinha um poder que, se fosse bem treinado, seria mais forte que qualquer um daqueles ali. Apesar de ser apenas uma Criança da Noite, e todos serem anciãos, terem mais de trezentos anos, Milena não tinha medo. Não se intimidava com isso. De maneira alguma. Era uma Tremere, e se julgava maior que os Ventrue, clã ao qual pertencia o Príncipe.

A expressão no rosto de Lázarus era de surpresa. Então a vampira que o atacou e o fez fugir era apenas uma Criança da Noite? Ele não podia acreditar. Ela era muito forte, pois não percebera nem mesmo pelo cheiro. Mas ela teria o troco, o que merecia. Era uma questão de tempo.

As atenções voltaram-se para o Príncipe, que retomou a palavra. Milena olhava nos olhos dele, um tom de fogo, e prestava atenção em cada palavra que ele dizia.

— Nossa região está cada dia maior no Dark World. Tenho percebido que os clãs têm se expandido além das fronteiras da Região Metropolitana do Recife. Temos muitas Crianças da Noite e Neófitos nas fronteiras de nossa Primigênie e precisamos passar a tutela deles para a próxima região. O Príncipe da Região de Marim convocou uma reunião e nos falou sobre alguns novos vampiros que estão atuando em sua região, mas são de nossa Primigênie.

— Onde é a Região de Marim? sussurra Milena para Lady Anthonya.

— É a Região de Olinda, que por ser bastante independente, não entra na Região Metropolitana de Recife.

O Príncipe continua a falar.

— Estes novos vampiros estão causando muitos problemas, aumentando a Jyhad naquela região. Os principais problemas estão sendo causados pelos clãs Malkavian e Brujah.

Uma garota, vestida em couro preto, se levanta aos gritos.

— O clã Brujah não tem nada a ver com isso!

Enquanto fala, a Brujah ergue-se no ar.

— Isso tudo é uma palhaçada! A gente não precisa daqueles idiotas de Marim, temos clãs suficientes em Recife.

O Príncipe olha calmamente para a Brujah, sem mover um músculo, mas Milena percebe que está se esforçando para manter essa calma, pois o cheiro do descontrole invade suas narinas, e não era proveniente da garota. Ele ergue a mão direita e paralisa os músculos da Brujah, que perde a fala, aterrorizada.

— Creio que não é necessário tanta alteração, Sheyla.

Todos olham para Sheyla, suspensa no ar pela Dominação do Príncipe Ventrue.

— S-sim... senhor...

O Príncipe abaixa a mão bruscamente e Sheyla cai furiosa.

— Posso continuar?

A Primigênie está em completo silêncio. O Príncipe continua a falar. Milena sente os ânimos alterados. Não era para menos. Juntar um representante de cada clã num único salão em pleno fervor da Jyhad seria no mínimo loucura. Ao menos serviria para aprender mais sobre sua nova vida. Ou seria sua morte?


***

Após a reunião da Primigênie, Lady Anthonya levou Milena para uma reunião especial do clã Tremere. Lá, anciãos de outras seis regiões estavam presentes. Era uma cerimônia de aceitação de Milena como Tremere, aprendiz de Lady Anthonya, e a conjunção do laço de sangue entre ela e sete anciões do clã, algo obrigatório desde a criação deste clã, no início da Idade Média.

Lady Anthonya explicou que era uma forma de dominação do novo membro, já que, através de um laço de sangue, a dificuldade de Dominação por um membro superior se reduz. Com este laço, Milena seria sempre submissa ao clã e à vontade dos anciões. Isto não significava que ela não pudesse ter vontade própria. A lei vampira se fazia pela lei do mais forte, muitas vezes.

Milena sempre conversava com Lady Anthonya. Sempre aprendendo alguma coisa no porão, ou na biblioteca. Tinha muito o que aprender, muito o que ouvir, muito o que ler. A biblioteca estava abarrotada de livros de Taumaturgia, exemplares simplificados do Livro das Sombras, vários fascículos do Livro de Nod e do Livro das Máscaras. Haviam livros de todos os tipos, livros explicando detalhadamente feitiços para a dominação de todas as espécies de clãs, de todas as seitas. Um livro para cada clã da Camarilla, um livro para os clãs do Sabbat e outros. Milena mau sabia por onde começar.

Foi numa dessas conversas que Milena viu sua senhora com outros olhos.

— Sabe, eu vi tantas coisas durante todos esses séculos!

— A senhora nunca falou sobre isso.

— Eu vivia muito bem em meu feudo. Era o ano de 1.191 depois de Cristo e eu estava completando vinte e cinco anos de idade. Era uma festa muito bonita, somente nobres da corte francesa, barões, duques, viscondes... Eu tive uma festa para uma rainha... eu me sentia uma rainha aquela noite. Um grande baile foi dado nas terras de papai. Eu era casada, e tinha um filho. Seu nome era Laurence. Aquela noite, eu conheci uma mulher. Uma mulher bastante elegante, rica e temida por todos. A Igreja suspeitava que era bruxa, mas nunca descobriram nada. A Santa Inquisição queria condená-la mas, incrivelmente, nunca tentaram nada contra ela. Ela era muito rica e bastante influente na sociedade. Suas grandes contribuições para a Igreja deram-na carta branca em todos os eventos da época.

“Para falar a verdade, era muito bonita também. Seu nome era Marie Françoise. Quando chegava em um lugar, causava diversas reações: inveja, consideração, paixão, ódio. E foi isso o que aconteceu quando ela foi anunciada por seu lacaio e entrou majestosamente pela porta principal de meu castelo.”

“— A Baronesa de Chatêau duMont, senhora Marie Françoise Rosé!”

“Todos voltaram-se para a porta, onde a baronesa estava, com suas magníficas saias vermelhas bordadas com o que a moda da época tinha de mais fino, os tons vivos de seu vestido contrastando com sua pele pálida, seus lábios de um vermelho sangue, seus cabelos dourados num penteado alto, deixando seu colo alvo à mostra.”

“Seu riso era contagiante, conversava com as pessoas e ria gostosamente, sua voz era como águas correntes. Fluía no salão. Ela se aproximou de mim.”

“— Parabéns, lady Anthonya. Sua juventude irradia em seu rosto.”

“— Muito obrigada, baronesa. É muita gentileza sua.”

“— Onde está lord LeBeau?”

“— Meu esposo está na adega, com papai.”

“Ela era encantadora. Muito gentil, era uma verdadeira maldade o que diziam dela. Mas minhas convicções eram errôneas. Durante a festa, num passeio pelos jardins do feudo, ela foi ao meu encontro. Falava-me perto, quase ao ouvido. Falava-me de uma vida, uma vida de prazeres sem fim, uma vida de festas sem preocupações, uma vida de prestígio e riqueza. Eu não compreendia que vida era essa, mas eu a queria para mim. Sua voz era doce e gentil. E foi delicadamente que afastou minhas longas madeixas de meu pescoço, deixando-o à mostra. Seus lábios tocaram a pele alva e eu senti uma dor tremenda. A dor da morte! Uma dor, que você já conhece.”

Lady Anthonya se levanta e se aproxima de Milena, ajoelhando-se a sua frente.

— Ela não se importou comigo. Depois disso, viajou definitivamente com toda a sua criadagem para a Espanha. E eu fiquei, sem tutela, sem senhora, sem ninguém. Invadi seu castelo e encontrei todo esse acervo que você está vendo. Estudei sozinha, praticamente comi os livros, e pude entender o que estava acontecendo comigo. Pude então ter esperanças de entrar no Paraíso, e passei a fazer tudo neste sentido. Meu esposo, o lord Kurt LeBeau, começou a envelhecer. Tive medo que descobrisse meu segredo e me deixasse. Comecei a disfarçar, deixei de usar maquilagem e passei a usar roupas mais discretas, prender o cabelo, tudo para parecer mais velha. Criei nosso filho com o melhor, mas ele também não podia saber. Minha sede de sangue humano era mais forte a cada dia, e eu não queria transformar ninguém, apenas me alimentar. O problema é que estava ficando cada vez mais difícil esconder. Até que meu adorado marido faleceu.

“Foi um choque para mim. Uma pessoa que passou por minha vida e que me deixava. Olhava para seu caixão sendo enterrado e percebia a dura realidade: todos morreriam, menos eu. Todos passariam por minha vida e me deixariam, eu ficaria só. Olhei para meu garotinho e vi meu futuro.”

“Meu filho se casou, e foi embora. Fiquei sozinha no castelo que herdei. O tempo foi passando, as pessoas mudando, eu ficando cada vez mais isolada, para que ninguém me visse. Tive netos, bisnetos, mas não cheguei a os conhecer. Não podia aparecer com o rosto de vinte e cinco anos de idade. Meu filho parecia mais velho que eu, minha neta parecia minha irmã. Escrevi uma carta e deixei a França. Como tinha muitas posses, viajei para a Espanha, em busca de Marie, mas ela já deixara o país. Fui para a Escócia, depois para a Holanda. Um país de judeus. Lá eu soube da morte de Laurence, aos sessenta e dois anos. Não havia mais nada para mim, nada. Meu destino estava traçado. Viajei para a Inglaterra, um grande país em desenvolvimento. Fiquei lá durante muito tempo, mudando de cidade em cidade, para que as pessoas não notassem quem eu era. O tempo foi passando, as pessoas mudando, a moda, a época, tudo ficou diferente. Transformei uma garota para que fosse minha aprendiz. Com a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil, preparei tudo para me mudar também. Viemos para Recife em 1811 e nos estabelecemos aqui. Mas a garota acabou quebrando a tradição da Máscara e eu mesma a exterminei. Desde então, procurei uma aprendiz que me servisse. Anos e anos de procura, mas não me agradei por nenhuma.”

“Os holandeses vieram ao Brasil e modificaram nossa cidade. Embelezaram-na e eu me senti muito bem aqui. Vinte e quatro anos depois eles foram expulsos, e esta mansão tornou-se minha. Vi muitas coisas acontecerem, muitos fatos históricos, contados nos livros, mas que eu vi com meus olhos. Me tornei uma Tremere poderosa nesta região, já era Anciã, a maioria dos Tremere me deve alguma coisa. Entrei na Primigênie dois anos depois de minha chegada e sou bastante influente por aqui. Mas há tantos séculos eu sonho em ver o Paraíso!”

Lady Anthonya segura as mãos de Milena, que está impressionada.

— Me perdoe, Milena. Me perdoe por ter te tirado a chance de viver, a chance de conhecer o Paraíso, e ter te condenado a viver eternamente nesta terra. Me perdoe!


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