Olhos da Meia-Noite - Capítulo Cinco

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Aquela declaração de arrependimento tocou profundamente Milena. Nunca pensou nisso, justamente para não se sentir mal. Como há muito tempo não aparecia para sua família, sumira, não sabia de seu pai, sua mãe, sua vida. E estava pensando nisso agora. Não tinha mais mãe, mas conseguia ver em Lady Anthonya uma mãe.


— Sabe, Senhora, sinto como se a senhora... não sei se devo dizer... mas como se a senhora fosse... uma mãe para mim.

Lady Anthonya sorri. Milena chegara a pensar um dia que ela não ria nunca. E realmente não tinha motivo algum para rir. Mas ela sorria agora, um sorriso terno.

— Sempre senti falta de Laurence. Mas foi para o bem dele que me afastei. Como não o vi morrer, sua memória esteve viva dentro de mim todos estes séculos. Jamais quis sentir afeto por ninguém, não queria que absolutamente ninguém tomasse o lugar de Laurence e Kurt. Eles foram minha vida. Minha vida! Mas, agora, sinto como se... como se você fosse minha filha... mas... o lugar de Laurence ainda é o mesmo, nada mudou, apenas foi... acrescentado e... eu não sei o que dizer!

Lady Anthonya abaixa os olhos, e Milena percebe uma pequena lágrima de sangue. Milena a abraça e, Lady Anthonya, depois de tantos séculos, relembra o prazer de abraçar alguém. Quase instintivamente, os caninos de Senhora e Criança da Noite crescem, e as duas mordem o pescoço, uma da outra.

Milena nem se lembrava o quanto o sangue de um vampiro é doce, principalmente de uma geração antiga. As duas fizeram um Laço de Sangue. Agora, eram como mãe e filha, não mais simples Senhora e Criança da Noite, Tutora e Aprendiz. E Milena estava muito feliz. Lady Anthonya, não sabia se suportaria tamanha felicidade. Mas seu coração, antes morto, não o coração de seu corpo, mas o coração de sua alma, agora estava vivo, radiante, alegre, emocionado.

Com tantos séculos de rotina, de fuga, de estudo, Lady Anthonya pensava que não fosse possível ter qualquer sentimento por qualquer coisa ou pessoa. Sempre se lembrava de seu filho e seu marido, e se tornava uma pessoa amarga, guardando-se para encontrar-se com eles no Paraíso. Mas, como estava errada! Era muito bom buscar a felicidade, senti-la perto, abraçando-a! Milena não tomaria nunca o lugar de seu filho, mas seria uma boa filha, e não a deixaria nunca. Esperava que, juntas, pudessem controlar a Shufi, a Fome, e pudessem alcançar o Lugar Celeste que lhes foi tirado. Deixar de ser um cainita e voltar a ser humano, para morrer a morte definitiva e fazer a travessia em direção à luz.


***

Aquela noite Milena precisava sair. Por mais que negasse a si mesmo, precisava vê-lo. Ricardo não saía de sua mente. Mas precisava entender que não existem relações amigas entre humanos e vampiros. Isso não pode acontecer. Mesmo assim, queria ir. Não entendia o que estava acontecendo. Apenas queria ir. E foi.

Entrou no bar. No mesmo instante, todos os olhares voltaram-se para ela. Sentiu medo. Afinal, tinha provocado uma confusão da outra vez. Caminhou para o balcão e sentou-se. O barman se aproximou.

— Você é a garota da confusão da outra noite, não é?

— Olhe... eu sinto muito se causei algum estrago...

— Estrago? Você me livrou do cara mais barra pesada da região!

Milena olha em volta.

— Fala do... do Cachorrão?

— Sim.

— Como pode ter tanta certeza que se livrou dele?

— Ele jamais voltará a esse bar. Foi desmoralizado por uma mulher. Só vai voltar se for pra acertar as contas com você. E na frente de todo mundo.

Milena respira fundo.

— Pois que venha.

O barman olha para a garota a sua frente. Tão bela, tão forte, tão corajosa.

— Bem, não vai pedir nada?

— Não... eu... na verdade, eu vim apenas ver alguém...

Milena olha em volta. Rapazes abraçam moças, outro grupo bebe e sorri em uma mesa, o bar cheio, muitos conversam.

— ... mas acho que perdi meu tempo...

— Talvez não.

O barman aponta para a porta, por onde entra Ricardo, e se aproxima de Milena.

— Imaginei que te encontraria hoje.

— Com licença... se precisarem de alguma coisa...

O barman se afasta, deixando os dois sozinhos no balcão.

— É, eu vim...

— A galera toda tá falando bem de você.

— Ué, de mim? Por quê?

— Porque você botou Cachorrão prá correr. Dá só uma olhada. Tá todo mundo ligado em você.

Milena olha em volta. Alguns rapazes numa mesa fazem sinal amistoso. Uma garçonete passa e sorri. Dois garotos em outra mesa cochicham.

— Não entendo. Eu fiz a maior confusão aqui ontem...

— Aqui toda noite tem confusão. E era sempre por causa dele, de Cachorrão. Agora que você botou ele pra correr, a galera gostou. Tu tá com a maior presença nesse bar, Milena.

Milena sorri.

— Por falar nisso, tem algumas coisas daquela noite que eu não me lembro. A gente saiu do bar... você me levou em casa?

— Sim, levei. Você tava... com muito sono e... eu tomei a liberdade de te ajudar a subir e... desculpe se eu fui intrometida...

— Claro que não... obrigado.

Milena olha em volta novamente. Os dois garotos na mesa continuam cochichando. Um deles olha para ela e seus olhos brilham. Respira fundo.

— Vamos sair daqui.

— Ué, por quê?

— Confie em mim. Vamos.

Os dois se levantam e saem do bar.

E assim se sucederam as noites. Milena se encontrava com Ricardo no bar, e tentava evitar outros vampiros, mas era impossível. Somente naquele momento ela percebeu o quanto eles eram muitos e estavam em toda a parte. Chegou a brigar, muitas vezes, com alguns deles por causa de Ricardo. Ela não imaginava o que estava acontecendo, até falar com Lady Anthonya.

Milena pára na porta da biblioteca, lady Anthonya escreve algo na mesa.

— Não fique aí parada, filha. Entre. Quer me dizer alguma coisa?

— Sim. Na verdade, é um pedido.

— Qual?

— Quero trazer um humano pra cá.

Lady Anthonya não conseguia sequer ouvir.

— O quê? Um humano? Nosso rebanho já está abastecido, não estamos precisando. E como estamos controlando a Shufi, não vamos precisar de humanos tão cedo.

— Senhora, não é isso.

— E o que é então?

— Bem... ele é um amigo e...

— Ficou louca?! Não existe amizade entre humanos e vampiros! É simplesmente impossível! O que está acontecendo, Milena?

— Ele é meu amigo, o conheci há algum tempo e gostaria que ele conhecesse a senhora...

— É um rapaz. Qual o nome dele?

— Ricardo... mas como sabe que é um rapaz?

— Pela maneira como está agindo.

— Como assim...

— Está apaixonada. Pior: por um humano! Isso é impossível! Os vampiros não podem se apaixonar!

— A... a... apaixonada? Mas...

— Não pode trazê-lo aqui. É perigoso. Não atingimos, nem eu nem você, a maturidade humana. Somos como animais, somos vampiros, temos instintos sanguinários. É perigoso para este humano estar entre nós.

— Entendo.

— Ele... ele já viu você... da forma que realmente é agora?

— Sim.

Lady Anthonya teria um ataque do coração se ainda fosse humana.

— Mas não se lembra. Quero dizer... tenho evitado vampiros, mas na primeira vez não pude fazer nada. Dois Malkavianos atacaram e eu tive de protegê-lo.

— Daí você usou a perda de memória seletiva.

— Sim.

— Tome cuidado. Primeiro com esse humano. Ele não pode saber quem você é. A melhor forma de se esconder é deixar dúvidas sobre nossa existência.

— Sim, Senhora.

— Em segundo lugar, tome cuidado com estes vampiros. Alguns deles são fortes demais, outros, mesmo fracos, podem aparecer em bandos, e não haver chances contra eles. Esses Malkavianos, mesmo sendo mais fracos, podem aparecer novamente. Cuidado, essas castas nunca esquecem o mal que fazemos.

Milena não entendia naquele momento, mas a Jyhad estava lá, viva, forte. Até mesmo vampiros como Lázarus eram letais peões nas mãos dos anciões. A Jyhad não era simples guerra entre vampiros. Era um poderoso jogo entre os mais antigos vampiros despertos.


***



Milena sente a areia sob os pés descalços. Há tempos não se permitia esse prazer. O barulho do mar a atraía, o cheiro invadia suas narinas como aroma suave, todos os sentidos agindo sobre si como um bálsamo. Dentre tudo, Milena distingue o cheiro de Ricardo, se aproximando.

— Oi.

— Como está?

— Bem, e você?

— Bem, também. Gosta daqui?

Milena olha para a vastidão do oceano.

— Sim... me lembro quando vinha muito aqui.

— Podemos voltar mais vezes, mas durante o dia. O que acha?

— Du... durante... o dia?

— Sim... já notou que só saímos à noite?

Milena engole seco.

— É só uma coincidência... é que não tenho tempo durante o dia e...

— Ah, você trabalha! Me diz onde que eu vou te buscar qualquer dia desses e...

— Não! Quer dizer... não... não é isso... é que... Ricardo... eu preciso te dizer uma coisa, uma coisa muito importante.

— Claro. O que é?

Milena se afasta, ficando de costas para Ricardo. Seus caninos crescem e Milena toma uma decisão. Vira-se para Ricardo, caninos retraídos.

— Você não sente curiosidade sobre mim?

— Como assim?

— Como eu sou... você não se pergunta de onde veio a força que usei para brigar com Cachorrão, por exemplo?

— Na verdade, sim, mas nem estava muito lembrado disso.

Milena sorri e se vira.

— Na verdade, não sou quem você pensa.

— É mesmo? E o que você é então?

Ricardo abraça Milena, que se vira e olha em seus olhos.

— Talvez você não goste de saber, talvez você me odeie, se afaste de mim... me esqueça.

— É tão grave assim?

— É.

— Bem, eu não vou dizer que não vou fazer nada disso que você disse, porque eu não sei o que você tem pra me dizer. Mas posso dizer que vou tentar te entender, e na medida do possível, não me afastar, continuar a mesma coisa.

Milena olha para aquele humano e sente mais confiança. Toca seu rosto, sente o sangue dele correndo em suas veias, vivo, mas não sente a Shufi, apenas um carinho imenso.

— Obrigada.

Os dois se olham por um instante.

— Não sou mais humana.

Ricardo sorri.

— Como assim?

— Talvez você nem acredite, mas sou um vampiro.

Ricardo sorri mais.

— Então era isso? Claro, claro. Estamos em outubro?

— Pára. Não é nada disso. Eu estou falando sério. Não se lembra de nada? De nada mesmo? Depois da briga no bar com Cachorrão?

Milena toca o rosto de Ricardo com a ponta dos dedos, da testa até o nariz. Como mágica, as imagens daquela noite voltam à mente dele, e as vê como um filme.

— Então...

— Sou um vampiro. Um vampiro de verdade.

Os olhos de Milena ficam mais claros, mais brilhantes. Suas pupilas se dilatam e se ajustam, seus caninos crescem devagar. Abre os braços e ergue-se no ar, diante dos olhos perplexos de Ricardo.

— Não acha incrível uma mulher como eu derrotar Cachorrão e aqueles rapazes?

— Eles...

— Também são vampiros. Um pouco mais fracos que eu, mas poderosos.

— Eu me lembro... mas é tudo tão longe...

Milena se aproxima de Ricardo, voltando ao chão. Os olhos e os caninos voltam ao normal.

— Eu optei pela perda parcial de memória. Não queria que você se lembrasse de mim como um monstro.

Milena se afasta de Ricardo e começa a andar em direção à avenida.

— Eu entendo se não quiser mais me ver. Vou desaparecer de sua vida...

— Milena.

— ... e não te incomodar mais...

— Espera. Não é nada disso.

Milena pára de caminhar.

— Não sente medo de mim?

— Medo? Você me livrou daqueles dois vampiros. Não, não sinto medo de você.

Milena se aproxima de Ricardo, olhos nos olhos.

— Vai haver momentos que não poderei ficar perto de você, que vou obrigar você a se afastar de mim, mesmo que seja doloroso, mas para o seu bem. Não sou humana, tenho instinto animal. Posso estar ao seu lado pra sempre, mas não todo o tempo.

Ricardo toca seu rosto.

— Eu entendo... mas vamos para a questão divertida da história.

— Divertida?

— Sim! Podemos fazer coisas que os outros não podem!

— Como o quê, por exemplo?

— Como... voar!

Os dois sorriem.

— Ok. Segure-se em mim.

Os dois se abraçam e erguem-se no ar, sorrindo. Mas Milena realmente poderia ser um perigo para Ricardo, pois estava ficando novamente com Fome, e precisava isolar-se dele, até controlar a Shufi.




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