Tempestade



"Dani, vai ficar por aí?"

Daniela olhou para o garoto recém contratado pela empresa de negócios financeiros e empréstimos. Ela estava ali há anos, mas estava cansada daquele emprego. Infelizmente, tinha ainda algumas pendências que não queria deixar para o dia seguinte.

"Vou sim, Marcos. Pode deixar que eu fecho tudo por aqui."

"Ok, boa noite."

"Boa noite."

O garoto saiu e ela ficou sozinha. Olhou para a janela e viu nuvens escuras se aproximando do centro do Recife. Lá embaixo, na Av. Dantas Barreto, uma multidão ainda se aglomerava àquela hora à espera de ônibus para voltarem para suas casas. Suspirou.


Voltou-se para sua mesa e se pôs a trabalhar. Quanto mais rápido começasse, mais rápido terminaria.

***

"Muito obrigado, Carlos. Fico te devendo essa."

"Não se preocupe, Leandro. Vai sair agora?"

"Daqui a pouco. Vou organizar meus papeis e já saio."

"Então, tchau."

"Valeu aí!"

Leandro observou Carlos sair da sala de julgamentos do Fórum Joana Bezerra. Olhando no relógio, pensou se ainda daria tempo de pegar uns documentos na filial de sua companhia, no centro da cidade. O céu estava cheio de nuvens carregadas. Seria uma noite chuvosa aquela. Pegou sua maleta, colocou seus papeis dentro e, com as chaves do carro na mão, saiu para o elevador do Fórum.

"Garagem, por favor."

"Pois não, doutor", respondeu a ascensorista, apertando o botão da garagem, observando o advogado em seu impecável terno.

***



Daniela terminou seu trabalho e estava pronta para sair, quando a chuva torrencial caiu sobre a cidade sem pena. Era uma chuva tão forte que não conseguia enxergar os prédios do outro lado da avenida. Segurou sua bolsa junto ao corpo e desceu as escadas do edifício, que já estavam vazias àquela hora. Todos já haviam saído do edifício comercial e se encontravam a caminho de casa ou em pontos de ônibus esperando o transporte.

Olhou para o lado de fora. Os ônibus vinham tão cheios que não dava para entrar. As pessoas se espremiam para conseguirem chegar em casa, mas Daniela não tinha coragem para isso, e resolveu esperar embaixo de uma marquise.

Ela observava que as paradas ficavam menos cheias, até ficarem com poucas pessoas. Infelizmente, em determinado momento algumas ruas começaram a alagar, e os ônibus pararam de passar. Viu quando algumas pessoas combinaram entre si de pagar um táxi, e, pensando em suas finanças, gostaria muito de ter dinheiro para entrar numa dessas.

Olhou para seus sapatos encharcados, e pensou quanto tempo mais ficaria ali.

***

Leandro já estava impaciente. O trânsito, normalmente pesado, estava excepcional aquele dia. Muito pior do que o normal. A chuva atrapalhando a visibilidade, o limpador do para-brisas não dando conta de tanta água, alguns pontos com alagamentos. Quando finalmente chegou à Avenida Dantas Barreto, o aguaceiro parou seu carro e não conseguiu mais andar.

"Droga! Eu devia ter adivinhado!"

Tirou o paletó e desceu do carro, mal conseguindo enxergar. Quase não havia mais ninguém àquela hora nas ruas, e não passavam mais ônibus. Dois táxis passaram lotados, e ele nem fez menção de chamar. Olhou em volta e viu umas pessoas correndo na chuva para longe, tentando se abrigar embaixo de marquises. Um relâmpago clareou o céu, e todas olharam para cima.

No momento daquela inesperada claridade, viu um ponto vermelho embaixo da marquise do prédio próximo a ele. Foi para lá. Era um guarda-chuva, e havia uma moça tentando conter o temporal que, com o vento, varria a chuva para lá, encharcando suas roupas.

Correu para lá, e viu que a marquise não protegia muito da chuva.

"Que tempestade, meu Deus!"

"Nem me fale", disse a moça.

E ficaram ali, em silêncio, ouvindo o barulho das gotas ao chão.

***

Daniela estava com medo de ficar sozinha ali. Então, um rapaz apareceu, viu quando o carro dele enguiçou por causa de um ponto alagado mais à frente. Não sabia o que fazer, quando ele se aproximou. Mas não conseguia iniciar uma conversa.

Olhou em volta, tudo silencioso. "Deus, como vou chegar em casa?"

Foi quando um raio atingiu algum lugar mais à frente, e ela assustou-se com o barulho ensurdecedor.

"Meu Deus! Isso foi um raio?"

"Sim" respondeu o moço. "Caiu mais à frente, provavelmente pro lado do mar. Tem alguns edifícios altos para lá, talvez tenha atraído."

Deste momento em diante, a tempestade aumentou, e os raios começaram a cair em pontos diversos, relâmpagos por toda a parte, como nunca vira em Recife antes.

"Me chamo Daniela", disse, estendendo a mão para o rapaz.

"Prazer, Leandro."

Apertaram-se as mãos.

"E eu me chamo Rafael", disse uma voz grave perto deles.

Os dois tomaram um susto, e se viraram para ver o homem que estava ali, perto deles, mas nem haviam notado. Estava vestido em andrajos, e agachado, parecia tocar fogo em algo.

O velho sorriu, alguns dentes estavam podres, e, terminando o serviço, esticou os braços em direção a uma lata fumegante. Saía fogo de lá, e parecia uma fogueira improvisada. Com uma mão suja, ele fez sinal para que se aproximassem.

"É mais quente aqui." Ele sorriu de novo. "Esta cidade é muito fria à noite, por causa da brisa do mar. Quando chove é pior."

Daniela e Leandro se entreolharam. Ele deu de ombros e os dois se aproximaram do fogo, mas não muito, guardando distância do mendigo. Ele olhou fixamente para ela, e ela notou o azul de seus olhos, no meio de tantas rugas e um rosto sujo. O velho sentou-se num canto e fechou os olhos.

"Será uma noite difícil" disse ele. "Uma tempestade daquelas."

***

Uma hora se passou, e nada da chuva acalmar. Clarões no céu seguidos de trovoadas fortes indicavam que a tempestade estava longe de acabar. Leandro e Daniela conversavam e, por vezes, olhavam de relance para o homem que continuava em silêncio, de olhos fechados, a um canto.

"Parece que ele dormiu."

"Não sei como consegue", disse Daniela, "está fazendo muito frio."

"Ele está acostumado. Como ele disse, faz muito frio em recife à noite."

Ela olhou para ele, e pareceu ver um sorriso no canto dos lábios do homem. Olhou para a rua, cujos alagamentos pareciam ter aumentado em alguns pontos, e não havia mais ninguém por ali, só os dois. Nenhum táxi ou ônibus passou naquela última hora, e os dois ficaram jogando conversa fora.

"Olhe" ela apontou. Ele olhou na direção que ela mostrava. "Parece que aqui não alaga de jeito nenhum."

A rua inteira estava alagada, tanto para o lado direito, como para o esquerdo. Mas o ponto em que eles estavam, embaixo da marquise, não enchia. Onde estava o carro de Leandro também a água escoava normalmente.

"Veja" ela mostrou. "Antes de você chegar, eu tinha que me proteger com o guarda-chuva, mas já faz uma hora que não o uso. Nem notei que, apesar de a chuva aumentar, os ventos que a traziam para cá pararam. Não estou mais encharcada."

Eles olharam em volta, e realmente aquele parecia um oásis no meio do temporal.

"Incrível" disse Leandro.

Os dois começaram a conversar amenidades, e Leandro, ao dizer algo que a fez rir, percebeu o quanto o seu sorriso era musical. Observou que quando ela sorria, uma covinha em sua bochecha esquerda se tornava mais aparente, e seus olhos pareciam mais infantis do que quando conversava algo sério. Aquilo o impulsionava a fazê-la rir mais.

Daniela olhou para Leandro. Um rapaz que parecia ter muitas qualidades e atrativos, mas o que mais gostou nele foi sua conversa sobre muitas coisas. Ele gostava dos mesmos filmes que ela, e isso os levou a conversas demoradas. Tanto que nem notaram quando a chuva foi parando suavemente.

"Veja, parece que a chuva deu uma trégua."

"Será que seu carro voltou a pegar?" disse Daniela esperançosa. Um ônibus demoraria séculos para vir, e não havia sinal de táxi.

"Espero que sim."

Ela olhou na direção do velho mendigo e se surpreendeu, pois não havia nada ali além da pequena fogueira.

"Olhe, onde está o velho?"

Ele olhou em volta. "Ele saiu e nem percebemos! Deve ter encontrado um lugar melhor, mais quente para ficar."

Eles foram em direção ao carro, e quando Leandro deu a partida, o motor rugiu. "Que maravilha, está funcionando perfeitamente!" Ele sorriu. Aliviada, Daniela se aproximou. "Entre, eu te levo em casa."

"Obrigada!"

***

Dentro do carro, indicando o caminho, Daniela percebeu vários pontos que estavam alagados, mas no caminho para sua casa, a água já havia escoado e passaram sem problemas.

"Estranho..." ela disse.

"O que é estranho?"

"Não sei... aquele velho sumir de repente. Você notou os olhos dele?"

"Não, que tem eles além de rugas e muita sujeira?"

"Eram impressionantes, e de um azul quase sobrenatural."

Leandro sorriu. "Acho que você ficou impressionada com o sumiço dele. Relaxe, ele só foi procurar algum lugar mais quente pra ficar."

"Deve ser. Como era mesmo o nome dele?"

"Não me lembro..."

Daniela descansou no banco do carro e olhou para o céu, que já começava a limpar. As nuvens estavam sendo levadas pelo vento, e a tempestade se afastava. Pensou ter visto um vulto, mas imaginou que era o cansaço pelo dia. Fechou os olhos.

De cima, um par de olhos azuis vigiava o trajeto do carro, e como que comandadas por uma força superior, as águas iam escoando rapidamente por onde eles passavam. Um sorriso brotou de seus lábios, mostrando dentes brancos e perfeitos, e uma luz azulada brilhava em seu entorno, como uma glória particular, enquanto suas asas brancas atingiam toda a sua magnitude.




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