A Presença



A casa estava silenciosa. Todos já tinham ido dormir e Augusto ainda ficara na sala para ler mais um capítulo de "O Senhor da Chuva", de André Vianco. Estava com sono, e por fim, ele o venceu. Apagou a luz e umas velas que estavam sobre o velho piano do avô, e fechou-o, como o fazia todas as noites. Nunca ninguém o tocava, ninguém o sabia, mas sua mãe gostava de limpá-lo todos os dias, e deixava aberto, para ver as teclas. Não sabia porque, era como uma conexão com o pai que se fora há anos.


Colocou o marcador na página e guardou cuidadosamente o exemplar que ganhara em seu último aniversário. Escovou os dentes e foi para seu quarto.

Fez suas orações noturnas, como todos os dias, e olhou pela janela do décimo primeiro andar a lua cheia, fabulosa, em toda a sua glória luminosa. Aproximou-se da janela, abrindo-a mais e escancarando as cortinas, recebendo no rosto o ar frio da noite. E lembrou-se de Alberto.

Não sabia porque se lembrara dele. Fora um amigo no jardim de infância, e em seguida seus pais mudaram-se de cidade, e nunca mais se viram desde então. Eles tinham o quê? Seis anos? Algo assim. Mas não sabia porque, estava com o rosto infantil na cabeça, e seu nome. Alberto.

E assim, sem mais nem menos, sentiu vontade de direcionar uma oração em seu favor. Na verdade nem chegou a ser uma oração. Foi mais um "Deus, abençoe o Alberto" e só. Uma coisa simples demais. De qualquer modo, ao se deitar, ainda pensou no garoto. Tinha sua idade, portanto, já era um rapaz feito. Será que também estava na faculdade? Ou já trabalhava? Por que estava pensando tanto nele?

Virou-se para o outro lado. E depois de algum tempo, viu-se orando de novo pelo Alberto, em pensamento. De qualquer forma, apenas pedira proteção para ele, e em seguida adormeceu.

Foi acordado pela música.

Não sabia exatamente o que estava acontecendo. Estava naquela meia consciência que se passa logo após ser acordado, entre este a realidade e o sonho. Mas havia algo estranho na música. Não parecia uma música comum, de extrema complexidade. Não podia estar sonhando com aquela melodia.

Abriu os olhos, olhou para o teto. A melodia continuava. Era uma música tocada ao piano, mas sempre em um trecho ela parava, numa única nota, e insistia naquela nota, como se ela não se encaixasse, e não encontrasse a nota certa para finalizar a composição. E então, a melodia recomeçava.

Sentou-se na cama e esfregou os olhos. Coçou os ouvidos. Ainda podia ouvir. Levantou-se silenciosamente e aproximou-se da porta; ainda ouvia a música, e naquele ponto ela parava novamente, insistindo numa única nota. Abriu a porta devagar, no instante em que a música recomeçava. O som se tornou ainda mais alto, preenchendo seu quarto. Olhou o corredor vazio, escuro. Olhou em direção à sala, onde o piano se encontrava, e estava totalmente às escuras.

"Ninguém está ouvindo isso?" sussurrou. A música chegou ao ponto crucial, e a nota foi repetida. Parecia que alguém estava tentando terminar a composição sem saber como. E a música recomeçou.

Chegou ao quarto de sua irmã e abriu devagar. O quarto ficava mais próximo à sala, e dentro o barulho era ainda mais alto que no seu quarto. Mas sua irmã dormia profundamente.

"Isabela... Isabela..." Augusto chamava, mas ela não acordava. Virou-a e ela resmungou alguma coisa.

"Bela, você não está ouvindo isso?"

"Ouvindo o quê... me deixa dormir..." e virou-se. Ele não conseguia acreditar que ela conseguia dormir com aquele som. Ainda mais quando chegava à nota-problema, pois quem tocava a tocava com força, com raiva, e depois, recomeçava.

Abriu novamente a porta do quarto dela e saiu, voltando para o corredor, onde o som era muito mais alto. Foi devagar se aproximando da sala, e até mesmo podia ouvir o som de dedos batendo nas teclas do piano, e o som dos pés apertando os pedais. E a nota. E o recomeço. Era um ciclo.

Tremendo de medo, fechou os olhos e esperou que parasse, mas não parou. Podia ouvir as batidas de seu coração, mesmo com toda a música. Olhou para trás, mas ninguém havia acordado. Estava só.

Entrou devagar na sala, reunindo toda a coragem que dispunha, e olhou para o piano.



A música parou.

O piano estava aberto, e a flanela vermelha que cobria as teclas estava jogada num canto. A porta da sala estava fechada, janelas fechadas. Ninguém estava ali.

Estava naquele momento tentando respirar, quando o barulho de duas badaladas do velho e pesado relógio gótico soou no meio do silêncio, fazendo-o pular.

Aterrorizado, voltou para seu quarto e trancou a porta e a janela, respirando descompassadamente. Aquela velharia era uma relíquia da família há gerações, e sua mãe nunca se desfez dele.



A casa inteira estava agora mergulhada no silêncio, e a única luz vinha da lua através da janela. O pânico tinha um gosto ruim na língua, e sabia que não estava louco: ouvira mesmo a música. Por Deus, lembrava-se claramente da melodia de tanto ouvi-la repetir e parar na mesma nota.

Foi para a janela e olhou para o lado de fora, sem conseguir se acalmar. Respirou fundo várias vezes, e sua angústia foi diminuindo aos poucos. Olhou para a cama e não sabia se conseguiria dormir.

Foi quando ouviu. O medo deixou-o paralisado, e assim ficou, como que congelado, olhando para a lua lá fora. Eram passos, dentro de seu quarto.

Algo caminhava e se aproximava dele. Fechou os olhos e esperou, não conseguindo se mover. O que quer que estivesse dentro de seu quarto estava entre ele e a porta, e a janela não era uma opção de fuga.

Os passos pararam. Sentiu que todo o lado esquerdo do seu corpo se arrepiara, e aquela agonia o levava a limites extremos do medo. Foi quando ouviu próximo ao seu ouvido esquerdo, quase em seu pescoço, uma respiração.



Este foi o momento em que seu corpo tornou à vida e ganhou movimento. Virando-se correu de seu quarto, vazio, e abriu a porta. Foi até o quarto de seus pais, mas estava trancado. Foi até sua irmã, onde fora minutos antes, mas a porta também estava trancada. Ouvia passos saindo de seu quarto, vindo pelo corredor. Correu até a sala, e acendeu as luzes, e olhou de volta pelo corredor completamente vazio.

Olhou os móveis, em seus devidos lugares, o sofá, a mesa, tudo às claras parecia agora ridículo o que acabara de presenciar. Mas ele sabia. Havia uma presença com ele em seu quarto.

Abriu a porta de vidro que o levava ao terraço e acendeu a luz, dirigindo-se ao parapeito, observando a lua e o céu escuro, repleto de estrelas. Ainda tremia, e um suor gelado descia por suas costas. Fechou os olhos, amedrontado, e orou tudo o que sabia. Estava aterrorizado.

Implorou a Deus que, o que quer que estivesse naquela casa, fosse embora. Era como se estivesse enlouquecendo.

Voltou para a sala, às claras. Respirou fundo e pensou em ficar ali, até que o dia amanhecesse. De jeito nenhum voltaria para o quarto, ou dormiria. Voltou-se para a porta de vidro para fechá-la, e havia uma marca nela, uma marca da palma de uma mão no vidro.



Quis gritar, mas então se viu sem voz. Tentava emitir qualquer tipo de som, mas nada saía. Apenas um leve sopro. O desespero estava em si, e pensou que ia morrer, quando algo ficou mais perturbador. Sentiu uma pressão de seu lado esquerdo, e todo esse lado ficou dormente. Caiu no chão, sentindo como se algo o pressionasse naquele lado. A pressão era tão forte que não conseguia respirar. Não conseguia abrir os olhos, e sabia que aquela presença era real e exercia poder em seu corpo de forma física.

Queria falar, queria mandar aquela coisa ir embora assim como aprendeu durante aulas na igreja, mas não conseguia, som nenhum saía de sua garganta. Sentiu que aos poucos perdia a consciência. A casa agora parecia cheia de gente, e ouvia passos por todos os lados. Gente passava caminhando ao seu lado, atrás próximo à sua cabeça, ia e vinha do corredor, mas ninguém o tocava. Apenas aquela pressão permanecia, e seu corpo com a dormência do lado esquerdo, desde o lado esquerdo da cabeça até o pé esquerdo. Não conseguia mais se mover.

Ouvia sons, como pessoas conversando, mas não entendia o que era.

Foi quando ouviu uma voz feminina, que nunca ouvira antes, bem próximo ao seu ouvido esquerdo, mas não falava com ele, disso ele sabia.

"Ele não."

Apenas duas palavras.

Foi quando a pressão em seu lado sumiu, e de repente, a presença que sentia na casa desaparecera. Aos poucos, foi conseguindo respirar, e sua mente clareou, e abriu os olhos. Sentou-se. Sentia um formigamento em todo o seu lado esquerdo, como voltando da dormência.

Olhou ao redor.

A sala estava vazia, completamente vazia. As luzes acesas, e a única prova do que aconteceu era o piano aberto, e uma marca de palma da mão no vidro, que sumia gradativamente.

Apesar do medo absoluto, sentiu que realmente aquilo que o pressionava e o que havia lhe aterrorizado tinha ido embora. Foi até o quarto de sua irmã, cuja porta agora estava destrancada, e viu que ela dormia na mesma posição que a deixara. Foi até o quarto de seus pais, porta destrancada, e ambos dormiam. Voltou para seu quarto. A janela estava fechada, as cortinas abertas, e a luz da lua agora era levemente coberta por uma fina camada de nuvem. Respirou fundo, sem saber se conseguiria dormir, e sem conseguir explicar para si mesmo o que acontecera.

Mas uma coisa era certa: aquela noite ficaria à espreita, olhos e ouvidos atentos.


***


No dia seguinte pela manhã, foi até a mesa para o café, e sua mãe já estava de pé.

"Filho, foi você quem deixou todas as luzes da sala acesa e a porta que dá para o terraço aberta?"

Olhou para ela, pensando no que deveria dizer a respeito da noite que passou.

"Devo ter esquecido..."

"Você fica até tarde lendo livros, deveria dormir mais cedo."

Augusto deu de ombros. Então, lembrou-se novamente de Alberto.

"Mãe, você se lembra de Alberto, que estudou comigo na alfabetização?"

"Engraçado você falar, eu estava me lembrando dos pais deles ontem à noite."

"Sério? Por quê?"

"Nada especial. Parece que voltaram para a cidade há alguns meses. Só isso. Fiquei sabendo ontem de manhã pela Elizabeth. Você sabe, filhos que estudam juntos, acabamos fazendo amizade com as outras mães."

"Sei... e você tem alguma notícia deles?"

"Não... é tudo o que sei... mas a Elizabeth tem contado com eles..."

"Você poderia me conseguir o telefone deles com essa sua amiga? Eu quero falar com o Alberto."

A mãe de Augusto parou no meio da cozinha, com um bule de café quente na mão, e franziu o cenho, olhando bem para o filho.

"Por que isso agora? Nem sei se o garoto vai se lembrar de você!"

"Eu só quero falar com ele, ok?"

Com a testa ainda franzida ela colocou o bule na mesa. "Ok. Vou perguntar a Elizabeth."

"Pode ser agora? Por favor?"

"Sinceramente, Augusto, não estou gostando desse seu tom... eu hein..."

"Por favor... só quero saber dele."

"Está certo."

A mãe saiu da cozinha, e Augusto ouviu quando ela falava ao telefone. A conversa parecia animada, até que se tornou baixa, quase um sussurro. Seguindo seus instintos, Augusto levantou-se e foi até onde sua mãe estava ao celular. Ao se aproximar, ela o olhou com um olhar grave, e viu que algo errado havia ali. Esperou. Sua mãe não falava, apenas assentia ao que Elizabeth dizia. E então desligou.

"Alberto sofreu um acidente esta noite."

"Como é que é?"

"Não se preocupe, ele está bem, está no hospital, mas parece que já vai sair. Como você...?"

"Não, eu não sabia. Me diga, o que foi esse acidente?"

"Parece que ele estava frequentando uma casa de recuperação de viciados em drogas... não, não faça esta cara. Ele não é viciado. Trabalhava como voluntário lá. O fato é que ele visitava os internos, e já exercia algum tipo de influência naquele lugar. Várias pessoas estavam se recuperando rapidamente. Mas alguma coisa parecia impedi-lo na última semana de ir até lá. Sempre algo acontecia, o carro quebrava, ou a bateria pifava, ou ele ficava doente. Até que ontem à noite resolveu ir de qualquer jeito. Pegou um táxi, mas o táxi quebrou no meio do caminho. E resolveu ir de ônibus, e foi quando ocorreu o acidente. Por volta das duas da manhã."

Augusto sentou-se devagar. Era exatamente esta a hora em que a música ao piano terminara e ele chegara à sala. Lembrava-se bem do momento em que o relógio dera suas duas badaladas.

"Como foi este acidente?"

"Eu não sei os detalhes, terá de falar com o próprio Alberto."

"Diga-me o hospital que ele está e estou indo para lá agora mesmo."

***

Sua mãe estava contrariada, mas Augusto tinha que ver o rapaz. Sabia que tudo o que acontecera àquela noite tinha a ver com ele. Algo o impelira a orar pela proteção do rapaz, que não via há anos e com quem nunca tivera aproximação, e justamente num momento como aquele. Sabia que orar por ele havia atraído alguma coisa ruim para si, e precisava saber o que havia acontecido.

Ao chegar, soube que ele já havia saído, e como não tinha um endereço, não sabia como contatá-lo. Voltou para casa, e sua mãe desta vez se recusou a ajudá-lo. E quando contou tudo o que acontecera, ela recusou-se mais veementemente.

Desolado, foi para seu quarto. Não sabia o que fazer para encontrá-lo. Pensou em procurar o telefone da tal Elizabeth para falar com ela... mas se perguntou o que ela pensaria disto. Pensou se sua mãe iria mudar de ideia. Sabia que não.

Foi quando lembrou-se da voz feminina em seu ouvido.

"Ele não."

O que ela queria dizer com aquilo? E que voz era aquela? Talvez jamais saberia. Era uma daquelas coisas sem explicação. Mas sabia que algo acontecera, algo sobrenatural, àquela noite, e também sabia que jamais esqueceria.

Talvez era para ser assim. Talvez Augusto nunca devesse encontrar Alberto, e nem mesmo Alberto devesse saber o que aconteceu.

Só tinha certeza de uma coisa:

Nunca mais veria este mundo com os mesmos olhos.



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