Fevereiro - Capítulo Oito - Final

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Uma equipe de agentes estava à paisana espalhada pelo Marco Zero e ruas adjacentes a noite de segunda para terça, e a terça-feira inteira, mas não encontraram nada. O esquadrão especial anti-bombas também veio, mas nada encontraram. Se haveria uma bomba ali, ainda não fora colocada.


A garota encontrada no Shopping do Paço ainda estava no hospital, gravemente ferida com queimaduras de segundo e terceiro grau. Por causa das dores, a mantinham sedada todo o tempo. A garota encontrada amarrada no catamarã estava no hospital mas fora de perigo. Em breve teria alta. Conversara com ela, e ela confirmara as informações que eles já sabiam. Fora sequestrada juntamente com as outras passistas e mantida em cativeiro, e o homem ficava o tempo inteiro de máscara. Não podia confirmar o agressor.

A noite caía, e o Marco Zero estava repleto de foliões. Ela olhava para o alto dos prédios, mas tudo parecia normal. Um casarão havia sido transformado numa das famosas Casas do Carnaval, com presença de celebridades brasileiras e estrangeiras e da imprensa. Outro casarão estava fechado, e mais outro também transformado em camarote vip. Restaurantes especiais ainda funcionavam, com mirantes para o mar.

Foi quando começou a apresentação do Maracatu. Mulheres segurando calungas entraram dançando, enquanto um grupo de percussionistas vinha atrás, tomando todo o centro do Marco Zero. Aquele ano, grades de isolamento cercaram a área, separando o público do palco, deixando a placa de bronze à vista.

Entraram dançarinos fantasiados de bois, típicos do folclore nortenho e nordestino. O pulso de Ângela acelerou.

"Procurem, ele tem de estar aqui em algum lugar!"

Sabia agora que não podia se tratar de Marcus Azevedo, pois ele estava em seu poder, preso na delegacia e bem vigiado. Ou ele estava com alguém, ou não era ele. Ou, na melhor das hipóteses, nada aconteceria justamente porque haviam pego o cara certo.

De qualquer modo, Ângela não conseguia sossegar. Não sabia porque, mas havia um sexto sentido, um pressentimento de que Marcus não era o assassino.

Observou a multidão, que apesar de lotar o local, era bem menor do que o esperado, graças aos assassinatos e às tentativas de assassinatos que foram amplamente divulgadas durante as festas. Agora, terça-feira de carnaval, o Recife Antigo estava prestes a ter um colapso.

"Uma libação, que vai subir do bronze!"

Observou a placa de bronze. A bomba tinha de estar lá, mas eles procuraram e não encontraram nada. Olhou para os passistas dançando e tocando. Eles não chegavam perto da placa, mantendo-se afastados e o mais próximo possível do palco. Em cima do palco, um homem se colocava ao lado do mestre de cerimônias da noite, e da próxima atração, Claudionor Germano. Olhou bem para ele, tentando reconhecê-lo, mas não conseguiu.

"Quem é ele?" perguntou a Medeiros, que estava ao seu lado.

"Não sei. Vou verificar" e se retirou.

Ela continuou observando. O que lhe chamara a atenção foi a constante busca que ele tinha nos olhos. Ele não assistia ao espetáculo, apenas procurava algo entre a multidão. Alguma coisa o estava incomodando, pois ele tinha os olhos apertados, uma linha dura nos lábios, e o cenho franzido. Olhou para suas roupas. Usava uma camiseta oficial do Carnaval 2015 e calças jeans surradas. Usava o cabelo comprido de um lado, e a cabeça raspada do outro. De dentro da roupa saía um fio, como de fones de ouvido, mas ela não viu nenhum fone. Em vez de sair pela gola em direção às orelhas, o fio saía pela manga em direção à mão direita do homem.

Foi quando ele encontrou seu olhar. Seus olhos desanuviaram-se e ele sorriu.

"É ele! Só pode ser ele!"

Mas ele já tinha saído.

"Medeiros, é ele no palco! Ele está fugindo!"

"Vou interceptá-lo!"

Ângela chamou os agentes próximos e mandou que os demais continuassem em seus postos. Correu para o acesso ao palco, e viu Medeiros subir, mas o homem não estava mais lá.

"Ele me viu e sorriu, em seguida fugiu. Ele tem um controle da bomba, ela está aqui em algum lugar. Ele vai acioná-la."

"Controle remoto?"

"Sim, mas ele tinha um fio pelo corpo."

Medeiros franziu o cenho. "Então pode ser outra coisa, um contato talvez? Alguém cúmplice dele?"

"Por onde ele poderia ter saído?"

Foram procurá-lo por perto dos camarins instalados por trás do palco. Fios estavam por toda a parte, equipes de produção, passistas, artistas, bandas prontas para tocar, gente se aglomerando em um espaço pequeno. Ângela não queria perder o homem, mas parecia que ia perdê-lo.

Olhou para todos os lugares, mas não havia saída. Se ele chegasse à multidão, o perderiam, e pior: tudo iria pelos ares.

"Lembrei!"

"O que?"

"Eu me lembrei de onde conheço aquele homem!" gritou Medeiros. "Tudo se encaixa!"

E Medeiros contou a ela. "Não pode ser! Estávamos o tempo todo atrás do homem errado!"

Fecharam o cerco, e sem ter para onde ir, o homem saiu de trás de um dos camarins.

"Finalmente vocês me encontraram." Ele sorria.

Ângela se aproximou, sem entender, mas cumprindo com seu dever. "Você está preso, Marcelo Amorim, por assassinato e tentativa de assassinato."

Medeiros colocou algemas no homem, e arrancou dele os fios. "Onde está a bomba?"

"Não há bomba alguma."

"O que?"

"Isso mesmo que você ouviu. Havia um comunicador, mas eu não pretendia explodir a festa."

"Então...?"

"Eu sou o gado simbólico. Eu sou a libação. Eu sou a oferenda a Baco!"

Mal terminou suas palavras, ele paralisou, palavras não ditas ficaram presas na garganta, e convulsionando caiu ao chão, algemado, entre os dois delegados.

Sem compreender, Ângela chamou a equipe de atendimento de urgência, que estava de plantão no Polo Central.

***



O corpo fora levado, mas Ângela encontrou antes que o levassem um dardo venenoso em seu pescoço. Alguém havia matado Marcelo antes que ele revelasse o segredo. Apenas havia dito que ele mesmo era a libação a Baco. Não fazia sentido algum.

Ela e Medeiros estavam muito ocupados com ligações telefônicas e informações aos agentes e à Polícia Militar para a contenção da população, além de informar à imprensa sobre os acontecimentos. O assassino do carnaval havia sido encontrado e era Marcelo Amorim, o carnavalesco que havia substituído Marcus Azevedo.

Não fazia sentido. Afinal, ele estava boicotando a própria festa. E o outro carnavalesco estava preso na delegacia.

Marcus fora solto após um interrogatório, e sua ficha fora limpa.

"Eu não acredito nisso. É isso? É o fim?"

"Ângela, acabou. Vá para casa descansar."

Ela olhou para Medeiros. "Sim... acho que é isso que vou fazer mesmo."

Olhou para as ruas, sendo esvaziadas aos poucos com foliões retirando-se para suas casas. A festa acabou. Felizmente, a quarta-feira ingrata não amanheceu em cinzas, como diz seu próprio nome. Mas Ângela não estava satisfeita com isso.

Saiu e foi para o carro que deixara estacionado no estacionamento interno do prédio da delegacia. Entrou e fitou o painel, tentando reordenar os pensamentos.

O poema era claro. Sabia que deveria haver explosões, mas o carnavalesco assumira que era ele o gado simbólico, era ele o sacrifício, a libação. Não fazia sentido. E o dardo venenoso? Fora aplicado por outra pessoa. Alguém ainda estava lá fora.

Olhou para sua chave e viu algo estranho pendurado nela. Um chaveiro que imitava um pequeno tubo de plástico, parecido com o que estava amarrado ao pulso da garota azul.

Um frio perpassou seu corpo e Ângela congelou. Olhou para o vidro, que continha um pequeno papel dentro dele. Devagar, abriu-o, revelando seu conteúdo. Para seu horror, outro poema.

Colunas brilhantes
Lindas libações
Música aos meus ouvidos
São tuas lamentações.

Agora me vou
Sem reprimenda
Baco aceitou
Minha oferenda

Mas saiba que ao fim
Nada é finito
O que pensas tu de mim
É o meu esconderijo.

Acabou, acabou
Mas a festa não morrerá
A cada ano há fevereiro
E o Carnaval voltará

E com ele...
O anfitrião
Aquele que sabe criar
Uma festa de arrepiar.

Ângela leu e releu o poema. Ele estava a solta. Bem debaixo de seu nariz. Mas como iria prendê-lo? Não havia nada contra ele. Mas era o único que tinha motivos para tal. O único com capacidade para criar toda esta cena. O único que conseguiu manipular a festa e tinha acesso a todas as informações sobre ela. O único que durante anos sabia como entrar e sair sem ser notado, pois sempre fora o comandante de todas as operações no carnaval.

O dono do camarote onde a primeira garota fora morta.
O criador da estética do Bloco da Saudade aquele ano.
Forte o bastante para subjugar as passistas e conhecido o bastante para se aproximar sem que elas o temessem.

Qual o melhor disfarce do que estar dentro da delegacia ao seu lado o tempo todo?

Voltou correndo para lá.

"Márcia! Por favor, onde está Marcus Azevedo?"

"O carnavalesco? Já foi liberado."

"Você o conhecia?"

"Ele assinava todas as festas de carnaval nos últimos anos..."

"Você já viu fotos dele?"

"Bem... não... mas ele estava aqui não estava?"

Ela procurou nos registros dos delegados, quem deveria estar em seu lugar aquele fim de semana.

"Você viu o delegado Medeiros?"

"Não... por quê?"

"Ele não deveria estar aqui?"

"Sim, deveria..."

"Você o conhecia?"

"Não, ele só fazia turnos noturnos até este feriado... ele trabalhava no GOE..."

Ela olhou novamente para as informações. O retrato do delegado Medeiros definitivamente não combinava com aquele homem que estivera ao seu lado durante o dia.

"Nós fomos enganados."

Longe dali, Marcus Azevedo, ex-carnavalesco do Recife, recebia uma ligação do prefeito informando que ele estava novamente restabelecido no cargo e que deveria planejar o carnaval do ano seguinte. Agradeceu e, em seguida, pagou o ator que contratara para representar a si próprio na delegacia.

Tudo fora meticulosamente programado. Infelizmente, algumas pessoas morreram, outras pessoas não haviam morrido como deveriam, mas havia se precavido o suficiente para não ser reconhecido.

O mais interessante é que, apesar de criar toda a magia que permeia o carnaval, ninguém o conhecia nem nunca havia visto sua fotografia. E se viram, nunca, jamais se lembrariam dele.

Interpretar um papel era simples, ele sempre fora ator. Se passar por Medeiros, cujo verdadeiro delegado havia morrido há alguns dias, fora fácil. E depois, matar Marcelo Amorim fora a coisa mais fácil que fizera, fazendo parecer que o dardo viera de longe quando, na verdade, viera de sua própria mão.

E fazer com que o bastardo assumisse a culpa antes de morrer também fora fácil. Ele sabia que ele viria até ele, pois estava destruindo a sua festa. No fim, ameaçara sua família.

E agora ninguém saberia quem ele era. Era fácil mudar. Agora, só precisava sumir. Ninguém daria por sua falta. Um homem que sabia trabalhar nos bastidores sempre ficaria nos bastidores, e a delegada Ângela não teria como prendê-lo. Não havia provas suficientes contra ele.

E então, acabou Fevereiro, e findou-se sua história.

Mas ele seria uma lenda. E disso não tinha dúvidas.

Caminhando tranquilamente pelas ruas que o levariam para longe do Marco Zero, tirou os aparatos que usara por baixo de suas roupas, fazendo-o parecer mais musculoso do que era, mesmo frequentando academias e aulas de dança popular, e vestiu uma camiseta no lugar da sua, a camiseta oficial do Carnaval 2015. Afinal, ele orquestrara toda aquela festa ao seu próprio modo. E seguiu adiante, para sua nova vida.

Batendo no volante do carro, Ângela amaldiçoou sua falta de visão, e pensou se conseguiria pegá-lo antes do próximo carnaval.



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